E se eu morrer hoje, que não
sejam falsos os meus inimigos. Que não me transformem subitamente em boa pessoa
e nem lamentem por meus talentos desperdiçados. De nada me serve a admiração
quando a podridão tomar este corpo e vermes devorarem minha carne. Em vez
disso, façam saber que fui má, pérfida. Reuni em mim todos os defeitos
possíveis, fui a síntese do errado, do macabro e do sujo. Então não ousem destruir
meu ser, não disfarcem com eufemismos a minha miséria, reduzindo-me.
E se eu morrer hoje, que não
chore a minha mãe. Lágrimas não podem me fazer voltar e, se pudessem, essa
seria minha desgraça maior. Parafraseio dos Anjos e digo aos homens que se
acostumem à lama que os espera. Acrescento ainda: louvem essa dádiva. Vivemos
para a morte, amigos. Damos voltas ao mundo, conquistamos homens e nações, mas
no final é tudo dela. Que mal pode haver em algo tão concreto, tão imutável,
tão eterno?
E se eu morrer hoje, que não
anunciem para o mundo. Não quero reuniões em torno de meu cadáver. Não
conjecturem sobre o que estaria fazendo, caso ainda existisse. As não batidas
do meu coração não são incumbência de terceiros. Se morro, longe estou de tudo
que abominava, inclusive seres humanos. Não perturbem esse perene silêncio que
encontro nos cárceres de meu túmulo.
E se eu morrer hoje, que morra
também meu eu. Fui uma entre bilhões, não sou digna de recordações, não fui
maior que ninguém. Se eu morrer hoje, se estes forem meus últimos segundos,
meus últimos suspiros, que a morte me preencha. Que o fio da vida rompa
lentamente, para que eu viva cada detalhe desse sonho e possa conhecer por
inteiro essa desconhecida. Se eu morrer hoje, que me deixem morrer por
completo. A morte é, acima de tudo, entrega e nela me fio. Se eu morrer hoje,
morro. Transformo-me em nada. Descanso em paz, na liberdade do não ser.
Fernanda Sales